domingo, outubro 31, 2010

Sábado

A mão cega que rastinha o tecto embala a gestação em que fui criada. A tinta já apodreceu e paira, arredodanda e escortaçada, nos cabelos perdidos pela carpete. Os ecos já me trespassaram, mas o gentil desleixo das pálpebras deixa-me ao início da madrugada em falsas esperas. Foram tantas as linhas de sentido que teceram o meu ser, já sem conta nem distinção. 'Não sabes o que é andar sozinha', ouço enquanto os ninhos se entorpecem nos ramos. Aí recordo as fugidas do sono envelhecido ao televisor, para vaguear as escamas do solo que tende a me acompanhar. Se não o tivesse dito, sem seriedade nem piedade da penumbra, não me teriam acompanhado os rastos prateados da vergonha.

domingo, outubro 24, 2010

Sedativo

Pestanejo e elevo-me à sonolência. O anelar tenta alcançar-te e ao teu esforço mútuo. A inconveniência grava-nos na sua memória, e deixas-nos caídos na cama. Os receios elevam-se em neblinas caramelizadas e deixam um doce travo no ar à medida que se passeiam nas paredes. Os tons terra agravam-se na profundidade das órbitas e no pasmo das tuas pálpebras à medida que me preparo para atordoar as taquicardias. Eu gosto, embora o possas achar trivial. Os traços germinam dos teus poros como ramos, frágeis e texturados, que habitam o teu queixo, como se transparece-se desejos etéreos que se desfazem a cada movimento meu. Para nós - os envenenados - apenas um par de dedos basta para imobilizar dois corpos. As dores anestésicas já fugiram, deixando-nos embevecidos no calor dos vapores. Os sons exteriores sufocam-nos as veias palpitantes, e deixamos de querer ficar. Os suores frios trazem a nostalgia incompleta que nos trespassa com a confusão, a deixar de pensar. A forma como me habitas num simultâneo excluído do meu ser entorna o café pelo edredão e deixa-nos à sombra da sobrevivência, caídos no soalho.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Quatro

Apodero-me dos figurinos que me arrastaram, finalmente ganhei, por pouco que seja, controlo. O esgar da escuridão semeia chuva, espero por ouvir os lamentos. Do pouco que se pode dizer meloso que me aconchega só este choro, pequena melodia, que deixa as linhas cegarem-me a pouca audição que a infância esqueceu. Não há tribuna na guerra quente a que te deixas pertencer, nem quem sentenciar. Deixo-me ver que era tua a tragédia que se avizinha enquanto deixavas rastejar os pés na água, a que sobrou da tua morte, e mantinhas o pescoço altivo. A estranha que me foste já se debilitou para um dia perder todo o encanto e as tréguas que te juraram. Já não peço a arrumação, pelo menos arranja o soalho. Já não tenho porta, só rachas nas paredes que me englobam a consciência. Indulgência, que me esfaqueia as memórias debilitadas, dedilha a teia da confusão, e a insónia deixada a pão e água cai na esparrela de falecer. As rachas alargam-se, eles entram pelas paredes a dentro, tomando formas de torsos mutilados reagrupados a monte, embora não me saiba a pesadelo que me preocupe. A linha do amanhecer, exausta, tenta mais uma vez subir aos meus desejos, deixando que as queimaduras me gravem a inocência. Quero a plenitude se me deixar ao recobro do esquecimento. E os espaços, os buracos? Já fugi uma vez, da vergonha e do desconforto que me traziam mais um dia, já esqueci a dor de ossos de cair. O pé esquerdo, mais abrutalhado e atabalhoado nos movimentos, o pobre pé esquerdo, recomeça a fraude ao levar-me à entrada do vazio, onde caio na mais forte esperança, onde raios de mil luzes e cores me cobrem o caminho de branco. Dificilmente permanecerei quieta, mais vale deixar o arrependimento pronunciar-se.

domingo, outubro 03, 2010

Entorpeço os dedos com a falta de graciosidade, que pensara ter reaparecido nas puberdades. A liberdade foi-se há tão pouco e já o movimento enferrujou, sem haver bode expiatório que não a vítima em si (fosse isto uma acusação). Uma ténue indisposição arca com as culpas da incapacidade auto-infligida, embora as parecenças me garantam elogios. De pequenos roubos fui formando coesão. As utopias formam uma névoa sobre o olho esquerdo; maldito olho esquerdo; maldito que me impossibilita de tudo mais um pouco. A desilusão indigna o esforço que volta a horas mal desperdiçadas. O peso de servir de manequim recobra a possibilidade da pouca vontade de ser um pedaço de realidade. Apenas uma vez o desejei, onde sobre o inócuo levitava com um outro; redesenhado vezes sem conta a sua face, obscura e rasgada, numa conjugação mútua de toques. Talvez a Collen me empreste a sua digna sobriedade para perdoar a levitação. Sinto que se esgota a sobriedade num vão onde caem todos os corpos alados, o cheiro do doce mais refinado coberto da pura inocência e ingenuidade levam-me a crer ainda mais. Esbugalho os olhos e demarco um meio sorriso torto. Senti o caminho interdito, à medida que se desembaraçam as tuas falanges dos meus pulsos, volta só um pouco. Outra nuvem, verosímil e cativante, aparece do fundo para te apreender, a raiva trilha as lágrimas sincopadas, o pulsar explode-me as esperanças a cada batimento. As poucas dúvidas receosas de acontecer assombram-me a nuca com sorrisos e cabeças esvoaçantes, conseguindo ser mais graciosas que eu. Os complexos embaraçam-se em gracejadoras sombras e ventos, cada um deles proporcionalmente inverso à sua vítima; razão pela minha monstruosa primazia pelo Inverno. Não é ironia, apenas a certeza recorrente que à muito pago para reprimir.